Reforma cria trava para liberação de remédio no SUS via decisão judicial
A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) com novas regras para aposentadorias e pensões deverá limitar a judicialização da saúde.
A pressão das sentenças sobre os Orçamentos de municípios, estados e União aumenta ano após ano. Esse custo extra desafia o equilíbrio das contas públicas.
Apenas em 2018, segundo dados do Ministério da Saúde, foi gasto R$ 1,4 bilhão pela União com medicamentos e tratamentos por determinação da Justiça.
A proposta de Bolsonaro e do ministro da Economia, Paulo Guedes, altera o parágrafo 5° do artigo 195 da Constituição. O trecho trata do orçamento da seguridade social, que abrange saúde, Previdência e assistência social.
“Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido por ato administrativo, lei ou decisão judicial, sem a correspondente fonte de custeio total”, diz a PEC.
A nova redação inclui na Constituição os termos “por ato administrativo, lei ou decisão judicial”. Esse arranjo, segundo especialistas, poderá dificultar o acesso a remédios e tratamentos.
“Embora tenha o apelido de ‘PEC da Previdência’, o texto abarca a judicialização da saúde”, afirma Roberto Dias, professor de direito constitucional da FGV-SP (Fundação Getulio Vargas de São Paulo).
Para ele, esse trecho é inconstitucional. Porém, o relator da reforma na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara, Marcelo Freitas (PSL-MG), já deu aval ao texto.
“Ao se dizer que uma decisão judicial não pode ser proferida sem fonte de custeio, está se violando a possibilidade de acesso à Justiça. Essa é uma cláusula pétrea [que não poderia ser alterada]”, afirma Dias.
Segundo o professor, a PEC tenta conter o aumento de despesas. “A intenção é louvável, mas não dá para desconsiderar as reiteradas violações de direitos praticadas pelo próprio poder público”, diz.
O professor de direito previdenciário da USP (Universidade de São Paulo) Marcus Orione também vê entraves no acesso à Justiça.
“A PEC traz problemas sérios porque impõe restrições aos direitos fundamentais, seja em ação individual, seja em ação coletiva”, afirma.
Para o presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais), Fernando Mendes, cabe a um magistrado apenas julgar interpretar as leis e a Constituição para chegar a uma decisão.
“Não é papel do juiz entrar em questões orçamentárias, alocar recursos, ou de alguma maneira definir de onde vão sair os recursos”, diz Mendes.
Hoje já há leis que obrigam juízes a atentar às consequências de decisões. Segundo os especialistas ouvidos pela Folha, essas normas, no entanto, não se sobrepõem à Constituição, que a PEC visa alterar.
“Uma coisa é uma norma ordinária, outra é uma norma constitucional”, diz Mendes.
Em meio a esse impasse, as contas não fecham. Entre 2008 e 2018, a União desembolsou R$ 7 bilhões para a compra de medicamentos e a oferta de tratamentos —crescimento de 1.711% no período.
A regra da PEC se estenderá a estados e municípios. Em 2017, o então ministro da Saúde de Michel Temer (MDB), Ricardo Barros, estimou em R$ 7 bilhões os gastos dos demais entes da Federação com sentenças judiciais.
O professor de estratégia no setor público do Insper Sandro Cabral reconhece o peso desses processos. “A preocupação do Executivo em controlar as contas públicas e garantir o Orçamento é legítima.”
Segundo ele, a judicialização é um processo “superconcentrador de renda”. “Um munícipe pode ficar com boa parte do orçamento [da saúde]”, diz o professor.
Cabral, no entanto, afirma que a saída para esse dilema exige debate. “Para alterar qualquer política pública, tem de conversar com as partes envolvidas e buscar solução factível para todas elas”, diz.
Ele ainda levanta dúvidas sobre como magistrados poderão exercer o controle dos gastos públicos. “O juiz vai ter acesso a questões de orçamento? Como se dará essa interface?”, questiona Cabral.
Segundo os especialistas em direito, se a regra for aprovada, a execução no dia a dia dependerá da interpretação de cada juiz, que poderá recorrer a outras normas para justificar a concessão de remédio.
Ele poderá também, com base na nova redação, negá-lo.
Entidades que representam secretários municipais e estaduais de Saúde de todo o Brasil minimizam os efeitos da PEC.
Em nota, o Conasems (conselho de secretários municipais) diz que o texto, “considerando sua redação bastante genérica, não impactará a interpretação do Judiciário” e não limitará a judicialização.
O Conass (conselho dos gestores estaduais de saúde) informa que a proposta ainda não foi pauta de assembleia-geral dos 27 secretários.
As entidades não dispõem de dados locais e regionais.
No campo previdenciário, a intenção principal é impedir a expansão de gastos do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) via ordem judicial.
Segundo o TCU (Tribunal de Contas da União), em 2017, foram R$ 92 bilhões pagos a segurados por meio de sentenças. O valor equivale a 15% dos R$ 609 bilhões em benefícios.
A PEC atualmente está em debate na CCJ da Câmara. Após a análise no colegiado, o texto segue para uma comissão especial. De lá, será encaminhado ao plenário. São necessários 308 votos dos 513 deputados em duas sessões.
A proposta, então, irá para o Senado. São necessários 49 votos, também em dois turnos.
JUIZ NÃO PODE DAR BENEFÍCIO SEM FONTE, DIZ GOVERNO
A Secretaria de Previdência e Trabalho nega, em nota, que a alteração do parágrafo 5º do artigo 195 da Constituição tenha o objetivo de “impedir que demandas sejam submetidas ao Poder Judiciário e por ele apreciadas”.
De acordo com o órgão do Ministério da Economia responsável pela reforma da Previdência, o acesso à Justiça é direito fundamental previsto no artigo 5º da Constituição.
“[A PEC] Tem, no entanto, o objetivo de estabelecer que o Poder Judiciário não pode, por meio de suas decisões, criar novo benefício ou ampliar a abrangência de um determinado benefício sem existir a fonte de custeio”, diz.
Na exposição de motivos da PEC, enviada ao presidente Jair Bolsonaro (PSL) e ao Congresso, o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirma que a “redução da judicialização” é um dos “pilares fundamentais” da reforma.
De acordo com a secretaria, ao decidir pela ampliação de um benefício ou serviço, o Judiciário entra no campo de definição de políticas públicas —uma responsabilidade do Executivo e do Legislativo.
A nova regra, confirma a secretaria, abrange Previdência, assistência social e saúde.
Embora um dos principais objetivos da reforma da Previdência seja equilibrar as contas públicas, o órgão informa que “não houve estudo específico” para o impacto fiscal. “A alteração foi proposta por princípio”, diz a secretaria.
DOENÇAS RARAS
Dados do Ministério da Saúde mostram que 90% do total gasto para atender sentenças judiciais se refere a remédios para tratamento de doenças raras.
Houve também decisões, segundo a pasta, para a distribuição de álcool em gel, óleo de girassol, protetor solar e xampu anticaspa.
O ministério afirma, em nota, que a judicialização “tem consumido parte importante dos orçamentos da União, de estados e de municípios”.
Hoje, a pasta cumpre sentenças de 14.785 processos. A maior parte é de medicamentos (82%), em seguida vêm procedimentos (10%), internações (5%) e insumos (3%).
Com dez tipos de remédio, a União desembolsou no ano passado R$ 1,2 bilhão e atendeu 1.596 pacientes.
O ministério atua, desde 2016, em parceria com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para fornecer subsídios para juízes sobre a efetividade clínica dos medicamentos.
Ferramenta da pasta, do CNJ e do Hospital Sírio-Libanês, lançada em 2017, permite ao magistrado consultar os benefícios comprovados dos remédios pedidos.
O e-NatJus, sistema online com informações clínicas, contém atualmente 42 pareceres técnico-científicos.
“A área [técnica da pasta] tem garantido o atendimento às decisões e a entrega aos pacientes e verificado se o pedido poderá ser suprido no próprio SUS [Sistema Único de Saúde]”, informa a pasta da Saúde.
Folha de São Paulo