Relatório final: ‘Chacina das Cajazeiras’ foi aprovada por ‘conselho’
As lágrimas derramadas nas Cajazeiras, no dia 27 de janeiro de 2018, jamais deixaram de cair. O bairro de Fortaleza marcado pela maior chacina registrada no Ceará procura voltar à rotina, apesar das marcas invisíveis da violência, que ficaram por toda parte. A alguns quilômetros do palco do ‘Forró do Gago’, onde se deu o massacre, ocorreu a última ação dos executores das 14 pessoas vítimas do horror, iniciado minutos após o relógio marcar meia-noite.
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Na escuridão, brilhavam longe as tochas de um Volkswagen Golf, de cor branca e placa fria, identificado pela Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), como um dos veículos usados na matança, organizada pela facção Guardiões do Estado (GDE). O veículo foi encontrado no dia seguinte, atrás do antigo Instituto Penal Professor Olavo Oliveira I (IPPOO I), no Itaperi. Com isso, fechava-se o ciclo de uma ação criminosa cuja motivação teria como cerne a disputa territorial pelo tráfico de drogas.
O relatório final sobre as investigações da ‘Chacina das Cajazeiras’, elaborado pela DHPP, apresenta depoimentos de alguns dos indiciados pela Polícia, testemunhas oculares, sobreviventes do massacre e até de integrantes do Comando Vermelho (CV) e da própria GDE. A partir deles, surgiram possíveis narrativas do decorrer da ação, resultante das 14 mortes, e como os executores banharam o bairro de lágrimas.
O plano
A decisão sempre vem de cima. Ainda que descentralizado, o comando da GDE é mantido por um ‘conselho’, formado pelos maiores articuladores da facção. Djair de Souza Silva, o ‘De Deus’, seria o principal entre todos os líderes. Aos 29 anos, ele teria dado a chancela para a matança, e entrado em contato com os demais conselheiros para os planos serem botados em prática.
Zaqueu Oliveira da Silva, o ‘H2O’; Auricélio Sousa Freitas, o ‘Celim’; e os irmãos Misael de Paula Moreira, o ‘Afeganistão’, e Noé de Paula Moreira, o ‘Gripe Suína’, teriam sido responsáveis pelo planejamento, organização e arregimentação de homens e armas para os assassinatos.
A região das Cajazeiras, de acordo com o depoimento de um integrante de facção, já havia sido comandada pela GDE, há cerca de dois anos. O ‘Forró do Gago’, por sua vez, estaria sendo ponto de encontro de membros da facção inimiga. Segundo a testemunha, diversas festas realizadas no clube teriam sido patrocinadas pelo CV, incluindo o Natal de 2017 e o Réveillon deste ano.
Embora a população da Comunidade do ‘Barreirão’ tenha afirmado repetidas vezes que a casa de shows não tinha relação com o crime organizado, os depoimentos de testemunhas e vítimas sobreviventes dizem o contrário. Algumas até relatam que músicas em alusão à facção eram entoadas e tocadas no som mecânico que animava os eventos no local.
Rosalina
Fernando Alves de Santana, o ‘Robin Hood’, mal acabara de acordar quando, dentro de casa, teria sido chamado por Francisco Kelson do Nascimento, o ‘Susto’, no dia 26 de janeiro. Ele teria comunicado que haveria uma ação durante a noite e ambos teriam de participar. Após o sol se pôr, quando o relógio apontava 19h, Joel Anastácio de Freitas, o ‘Gaspar’, teria recebido a mesma informação. Dessa vez, ‘Robin Hood’, por meio de aplicativo, teria repassado os detalhes de que haveria uma reunião na Comunidade da Rosalina – comandada por Zaqueu – para afunilar as decisões da matança.
Às 20h, um homem, supostamente, desconhecido de ‘Robin Hood’ teria deixado o Golf branco em sua casa. Segundo ‘Gaspar’, em torno de 21h, ele e ‘Robin Hood’ teriam saído no carro para sondar a área do Forró do Gago, para verificar possíveis rotas de fuga.
Entre 23h14 e 23h54, a Polícia recebeu, pelo menos, cinco denúncias anônimas – que teriam possíveis relações com a chacina. Os chamados teriam partido de moradores do Conjunto Palmeiras, relatando que um grupo de homens fortemente armados estaria nas ruas Canguru e Maysa, vestidos de preto, usando balaclavas e empunhando armas de fogo.
Após o reconhecimento do local, ambos teriam voltado para a ‘Rosalina’ e, junto a Ruan Dantas da Silva, o ‘RD’; Rennan Gabriel da Silva, o ‘Biel’, e dois adolescentes, se reunido em uma casa abandonada em torno de 0h. De acordo com ‘Robin Hood’, estavam presentes dois homens, de alcunha ‘Criolo’ e ‘Branquinho’, contudo, a participação deles não foi confirmada pela Polícia Civil.
Os sete teriam conversado no local e recebido a informação de que três integrantes do Comando Vermelho seriam os alvos da ação, incluindo o dono da casa de shows Forró do Gago. Em seu depoimento, ‘Biel’ disse que o líder ‘Afeganistão’ já tinha sido da facção inimiga, por isso sabia o itinerário dos membros e quais deles costumavam frequentar o local da festa.
Camisas pretas, balaclavas, calças e coletes à prova de balas teriam sido o traje utilizado para a matança. De acordo com uma testemunha, no momento dos crimes, a GDE utiliza roupas similares às da Polícia, para induzir a população ao erro, fazendo pensar serem militares.
Além do Golf branco, um Fiat Siena preto, também com placas frias, foi utilizado na ação criminosa. Porém, os depoimentos dos suspeitos não convergem em relação à disposição deles dentro dos veículos. O armamento levado teria sido variado: pistolas de diversos calibres, revólveres, uma espingarda calibre 12 e uma metralhadora artesanal. Vestidos e armados para matar, os suspeitos deram partida e seguiram em direção ao Forró do Gago.
Uma testemunha teria visto de sua própria casa o momento em que os dois carros entraram na Rua Madre Tereza de Calcutá. Armados, utilizando bolsas pretas. À medida em que as munições acabavam, em razão dos tiros efetuados, pegavam outros carregadores municiados e continuavam a atirar. As primeiras vítimas, segundo os relatos, teriam sido o motorista da Uber, Natanael Abreu da Silva, de 25 anos, atingido por oito disparos; e Antônio Gilson Ribeiro Xavier, de 31 anos, atingido por 17 tiros.
De cada carro teriam descido de quatro a cinco homens, que atiravam de forma aleatória. Na chegada, gritavam “é tudo três!”, em referência à GDE, e assassinaram mais 12 pessoas. Outras 15 pessoas feridas durante a ação sobreviveram.
Algumas vítimas teriam implorado para que eles não atirassem mais, porém os criminosos teriam dito que “tinham de terminar o serviço”. Testemunhas contaram à Polícia que ‘Gaspar’ foi o autor dos tiros contra o vendedor de lanches, Antônio José Dias de Oliveira, o ‘Marrom’, 55, além da morte de quatro mulheres. ‘RD’ teria, da mesma forma, chegado na comunidade dizendo que foi responsável por tirar a vida de duas mulheres. Todos os suspeitos, contudo, negam participação nos homicídios.
O final
‘Robin Hood’ disse ter ido em casa, trocado de roupa e encontrado um dos adolescentes suspeitos de participar da chacina. O jovem de 17 anos teria ido à casa de Ayalla Duarte Cavalcante, o ‘ Zóio’, e pago R$ 70 para que ele queimasse o Golf branco, utilizado na chacina. Os três suspeitos teriam se reunido e, junto a ‘RD’, ateado fogo no carro, pensando colocar fim na história com a destruição do automóvel, mas não consideraram que as chamas seriam apenas um elemento das investigações.
A Divisão de Homicídios apurou o caso durante quatro meses e colheu depoimentos de mais de 100 pessoas. O relatório final da Especializada indiciou 13 pessoas, incluindo dois adolescentes. Outras três pessoas, possivelmente, estariam envolvidas na chacina, mas nada foi encontrado pelos investigadores.
Pedro Paulo do Prado Sousa, o ‘Irmão Pedro’, havia sido apresentado pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) como um dos possíveis executores diretos, mas, como o Diário do Nordeste havia adiantado, em maio, ele já estava preso no dia da chacina. Ana Karine da Silva Aquino, a ‘Nega do Pezão’, também não foi indiciada no processo em questão.
No local da chacina, os policiais encontraram cerca de 100 estojos de balas, uma granada, além de projéteis. Ao redor do Forró do Gago, em um raio de até 300 metros, houve a constatação do trânsito de 18 viaturas, identificadas pela Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops), mas nenhuma chegou a tempo.
Indiciados
1. Djair de Souza Silva, o ‘De Deus’;
2. Noé de Paula Moreira, o ‘Gripe Suína’;
3. Auricélio Sousa Freitas, o ‘Celim’;
4. Zaqueu Oliveira da Silva, o ‘H2O;
5. Misael de Paula Moreira, o ‘Afeganistão’;
6. Rennan Gabriel da Silva, o ‘Biel’;
7. Francisco Kelson Ferreira do Nascimento, o ‘Susto’;
8. Joel Anastácio de Freitas, o ‘Gaspar’;
9. Ruan Dantas da Silva, o ‘RD’;
10. Fernando Alves de Santana, o ‘Robin Hood’;
11. Ayalla Duarte Cavalcante, o ‘Zóio’
12. Um adolescente de 17 anos;
13. Um jovem de 18 anos, que era menor no momento do crime;
Os dez primeiros irão responder por homicídio qualificado, tentado e consumado, por motivo torpe e por impossibilitar a defesa da vítima em continuidade delitiva, organização criminosa e corrupção de menores. Fernando, Ruan e Ayalla foram indiciados por prática do crime de incêndio e fraude processual.
Destes, oito estão presos; Ayalla responde em liberdade; Misael e Auricélio seguem foragidos. Os processos dos dois adolescentes suspeitos de ato infracional seguem pela Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA) em segredo de Justiça; ambos estão apreendidos.
Diário do Nordeste